Marcadores

Localize-se

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Jogo em Família - Parte 1



O cheiro do molho de tomate dominava toda a cozinha, tão gostoso, que boa parte dele também conseguia preencher a sala. Na cozinha, bem equipada, estava Milena. Um semblante suave e um sorriso tímido escondido entre os ferros do aparelho recém colocado. A garota preparava o jantar da família com maestria, sempre escondera o jogo, e naquela noite, mostraria seus dotes. O pano de prato de um lado no ombro, o avental preso no pescoço e vários talheres pelo balcão. A sobremesa já estava na geladeira, e o macarrão quase pronto para ser servido. Preparava a salada com cuidado, cortes finos e retos, aprendera o manuseio da faca com o pai, que antes, mal sabia fritar um ovo. Não deixava ninguém aparecer na cozinha, precisava daquele espaço para preparar o prato que seria servido, e não conseguiria fazer aquilo com tanta gente. Na sala, os sofás estavam ocupados pelo pai, a madrasta, o filho da madrasta e sua esposa, e o irmão mais novo, além de falatórios e risadas. Estavam todos surpresos com o convite da fechada menina, mas não mostravam, a teoria principal, era que o psiquiatra estava fazendo seu trabalho.

Milena permaneceu com os fones no ouvido o tempo todo. A música alta ajudava a se concentrar nos seus afazeres. Repassava-os a todo instante em sua mente, passo a passo. Arrumou a mesa com uma toalha nova, comprou flores que ficaram num canto. Usou os pratos novos, os copos de cristal e os talheres do faqueiro de prata. Aquela ocasião, merecia. Colocou uma garrafa de vinho importado como bebida e, para o Michel, o irmão mais novo, um refrigerante de uva da melhor marca. Assim que terminou, colocou a comida na mesa e serviu os copos, chamou todos para vir e compartilhar daquele momento único. Esperou que todos se sentassem e, ainda sorrindo, continuou em pé. Segurou sua taça e bateu levemente a faca no cristal, chamando a atenção de todos.

- Er... por favor. – Começou tímida. – Eu queria aproveitar esse momento, para dizer algumas palavras. Todos aqui sabem que éramos duas famílias distintas, perdidas por esse universo, mas hoje, somos apenas uma. Simone pode não ser minha mãe, mas é a mulher que meu pai escolheu para passar a vida depois dela, e eu a respeito e admiro por isso. Vinícius pode não ser meu irmão de sangue, mas como eu sempre quis ter, se tornou meu irmão mais velho e, consequentemente, Fernanda, minha cunhada. Meu irmão aqui conosco, meu pai. Eu queria dizer que, se não fosse por vocês, eu nunca estaria aqui, vivenciando esse dia tão especial. Passei por muitas crises, tivemos todos muitos conflitos, e sei que boa parte deles, se deve à minha presença, mas hoje, isso tudo vai acabar. Renascerá um novo elo entre nós, um elo que jamais será quebrado, pela força que esse sentimento que deve nos unir terá. Eu sei que isso está ficando longo e monótono, por isso vou pular para a parte principal. Além de pedir desculpas a todos vocês pelos meus atos impensados, gostaria de dizer a você, Fernanda, que todas as vezes em que você me insultou, faltou com respeito e mostrou o quão fútil, metida e descartável uma pessoa pode ser, hoje, serão apagadas da minha memória. A ti, Vinicius, brindo todas as brincadeiras de mau gosto, as vezes em que não me deixou dormir quando eu mais precisava, e à falta de consideração. Ao meu irmão Michel digo que todos os transtornos que me causou, as noites sem dormir, os horários em que o despertador tocava para dar remédio, os hematoma que deixou cicatrizes em meu corpo, a falta de compaixão por aquela que sempre estava ao teu lado para segurar tua mão, hoje, será diluída nesse vinho que nos molha a boca. Simone, olhando em teus olhos agora, tomo fôlego para dizer que todas as noites em que meu rosto foi manchado por lágrimas por causa das tuas infantilidades, ou todas as vezes em que meus braços receberam arranhões de raiva pela tua audácia, o poço que você cavou com a foice do diabo para este corpo cansado de tantas batalhas, hoje, será lavado com o sangue divino. E a você, meu pai, que espancou a alma que o tinha como exemplo, fechou os olhos enquanto eu me afogava em dores e sofrimento, pisou em cima quando o mundo resolvia me estender ao chão sem pena, abandonou para a morte a criança que segurava tua mão e tripudiou do resquício de amor que um dia restou em meu peito, terá a consciência limpa pelo perdão que parte da minha mente em busca do teu coração.

Todos os olhares na mesa se voltaram para a garota que bebia o vinho com uma vontade inimaginável, mas não lhe restavam mais olhares atentos e graciosos, apenas revolta e susto pelas palavras que saíram de lábios tão finos.

Depois de degustar o vinho, Milena se afastou dois passos da mesa e retirou um pequeno revolver do bolso da calça, escondido pelo avental. Em seu rosto, o semblante era calmo e maníaco, mas certo do que estava fazendo, levantou a arma e atirou contra o teto, apavorando os demais.

- Quem quer brincar?

Um comentário:

Anônimo disse...

Teste