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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mil noites



É mais um dia de festa na corte. Um novo casal para ser torturado, uma nova fogueira esperando pela carne fresca. Não entendo como todos podem celebrar estes infortúnios, é tão... cruel. Dizem que ele é um vampiro, teremos a prova hoje. Que a seduziu com seus poderes, e que a carrega para esse mar de tempestades. Ela? Houve rumores de que era uma bruxa, capaz de controlar os elementos, capaz de ter o demônio incorporado em seu rosto angelical. Não posso saber a veracidade dos fatos, sou apenas um criado que se esquiva de pernas curiosas, e se esconde entre essas pilastras de cristal.
Já é o segundo dia que ela está ali. Os braços erguidos para que os pulsos possam ser segurados pelas algemas, pendurada pelo teto. Os pés, mal encostam o chão. Estão descalços, frios, tão frios que se tornam quase azuis. O inverno castiga nossos dias, tão forte que chega a congelar os dedos, já castigados, da pobre moça presa. Seus olhos, fechados, escondem as olheiras de intensas horas de tortura. Parece um anjo, um anjo pagando pelos pecados do mundo. A pele, tão clara, quase se confunde com o holofote direto em seu rosto doce. No corpo, esticado pelas correntes, peças em vermelho púrpura. Realeza. Pano gasto, sujo, rasgado na altura dos joelhos, preso à cintura por um cinto de pregos. A blusa perdeu uma das alças, e agora, frouxa, dança no corpo com o vento que passa entre o corpo cansado, encharcado de sangue e angustia.
- Tragam o vampiro!
Ordens. De quem? O rei está longe, distante o suficiente para não ouvir os gritos chorosos da filha, tão forte, que fora capaz de agüentar tantas atrocidades em apenas dois dias. Ele vem. A calça colada ao corpo, onde o rubro se confunde em tecido e sangue. A camisa, rasgada e suja, como a dela. Os olhos negros, tão negros como o carvão. Parecem famintos, olham ao redor e são capazes de devorar qualquer um que retribua o olhar. Parece feroz, um animal! Ele se debate, mas parece tão sem forças. Uma cruz grudada no peito, cravada na carne, cruz de prata, retirando suas resistências, levando-o ao fim. Os grilhões riscam o chão, fazendo com que o ruído seja um modo de abafar os gritos da dor a qual ele é apresentado. Dias sem comer. Ele continua a brigar, lutando pelo resto de vida que ainda tem, até que seus olhos encontram os dela.
Você pode ver sem precisar de lentes especiais. Os olhos deles se acalmam, em um verde claro. Os dela se abrem, mostrando o cinza quase branco que os clareiam. Um sorriso em cada lábio, uma lágrima em cada face. Ela reúne forças de todo corpo para se mexer. A vontade de tocá-lo, de dizer o quanto o ama. Ele vai ao chão com um golpe de estaca. Ainda dolorido, ergue a cabeça para lançar um beijo à sua amada. A retribuição vem com um sorriso tímido, além dos lábios cortados.
- Carrasco? Chicote.
O som do couro estalando no ar parece interromper aquele momento tão único dos dois. O segundo estalo vem quente nas costas frias dele. A carne se recupera com dificuldade, mas ele permanece firme. Novamente o couro dança, encontrando as costas do rapaz com crueldade. Ela grita, esperneia, sabe o quanto aquilo dói, sentiu na pele poucas horas antes. Ele parece pedir para que tenha calma, aguentará firme, como deve ser. Ela não pode aceitar, o ama, mais do que a vida, mais do que o ar que já é raridade em seus pulmões pressionados pelo frio. Os olhos dela ficam ainda mais claros, olhando para o teto. Sabe que daqui a pouco virá o dia, e ele não vai resistir. Seus lábios se mexem, como em uma oração. Palavras rápidas, sem sentido, é mesmo uma bruxa? O que é aquilo em suas costas? A carne está rasgando, sangue escorrendo por todo corpo, ele sente o cheiro, doce aroma que adora sentir. Está louco pelo sangue dela, está louco por ela! Asas! Estão nascendo asas nas costas da garota. Novamente gritos, ela grita tão alto quanto os urros que ele solta pela dor do corpo machucado. Asas tão lindas ela tem. Um anjo? Não! São asas negras como os olhos de corvo que ele tivera segundos antes. Penas reluzentes e majestosas. São tão grandes que podem cobri-la por inteiro. Ela se entrega. O corpo fica completamente pendurado pelas correntes. Não tem mais forças, suas asas esgotaram o que mantinha dentro de si.
- Guardião?
Flechas. Homens com armaduras prateadas, espadas, estacas e arcos prontos para atirar. Os chicotes se cessam, ele é jogado em um canto qualquer.
- Abra os olhos, meu amor, abra os olhos.
A voz dele sussurra como um sopro na direção da sua menina. Uma brisa tão poderosa que a faz obedecer. O rosto está manchado, gotas de sangue escorrem de olhos tão claros. Ele chora, suas lágrimas são como a chuva que bate em pedras de gelo no teto. A primeira flecha. O primeiro grito de dor que ela deixa escapar. Ele se agita, mais três flechas acertam suas asas, e uma outra perfura seu abdômen. Parem, parem, parem! E ninguém para. Parecem se divertir com aquela tortura. Dois homens vão até a garota, beijam seu rosto cansado para provocá-lo, enquanto arrancam suas penas com as espadas. Ela já não agüenta nem mais gritar de dor. Desmaia.
Ele se desespera. Reúne as forças de mil soldados e levanta. O corpo empurra os homens que vem em sua frente, e ele segue, cambaleando até o corpo dela.
- Reaja, reaja!
Sussurra da mesma maneira que antes, na esperança de que ela ouça. Ele tem poucos minutos, o sol já está vindo e sabe o que vão fazer. Ele precisa dela, ele precisa, ao menos, ver a luz dos seus olhos antes de morrer. Viveu tantos séculos naquela espera, que não pode deixar que escape por entre os dedos como água.
- Eu não... consigo.
Foram as únicas palavras que ela disse, de forma murmurada. Os homens se afastaram, deixaram os dois ali. Ele sentado, apoiando a cabeça nas pernas dela, e ela pendurada, sem forças para lhe acariciar.
Estão todos rindo. Malditos! Não podem ver o horror que eles passam. Não entendem que o maior sofrimento do qual estão passando, é ver a pessoa que amam sendo machucada e estar ali, amarrado, acorrentado, sem poder salvar.
Poucos minutos se passam, minutos de conforto talvez, até que novamente a voz ordena um trágico fim.
- SOL!
Um grito de guerra emanado pelos soldados eufóricos. O dia amanhecera, eliminariam aquele maldito vampiro de uma vez. Ele permanece quieto, aproveitando cada milésimo de segundo em que pode desfrutar do corpo dela. Sabe que nunca mais a verá. Ela abre os olhos, inchados, com dificuldade.
- Eu te amo.
Seus lábios moldam as palavras sem som. Ele as repete igualmente, sorrindo. É carregado para o centro, o peito inflamando, os olhos despejando cascatas de lágrimas. Um ruído. O teto está se abrindo, pouco a pouco. A luz do sol está adentrando o lugar com raios pequenos, mas que procuram o corpo do vampiro. São tão finos, que parecem agulhas perfurando sua carne. Ele não vai gritar, sabia desde o começo e não quer assustá-la. Fecha os olhos e se lembra dos momentos em que passaram juntos. Brincadeiras, brigas, risadas. Não importa o que aconteça, ele lembrar-se-á dela.
- Eu te amo.
Ela repete em voz alta agora. Ele a olha e, desconcentrado, sente o facho de luz que vem direto em seu corpo. Como um reflexo, se joga pra trás. Aquilo era a pior de todas as dores que já havia experimentado. Procura a sombra, quer escapar, quer tentar por mais uma vez estar ao lado do seu amor. Ela o olha fugindo da morte e seus olhos se acendem como brasa. Vermelho, tão vermelho que mal posso descrever. Um grito mais alto e ela é capaz de arrebentar as correntes que prendiam seus pulsos. Vai ao chão mas cai em pé. Que diabos está acontecendo? Seus dedos parecem cortar as correntes como se fossem papel, e as flechas não mais atingem seu corpo que antes vagava exausto. Ele sorri. Sabe o que está acontecendo e, ainda que não goste, sabe que o demônio interior dela os dará uma chance.
- Pela luz divina e pelas sombras demoníacas, eu os condeno a mim!
Sua voz parece como a de um trovão e seu sopro leva todos os guardiões e soldados ao chão com um único golpe. Seus olhos percorrem todos no local, como um predador pronto para aniquilar, mas ela nada faz, apenas protege ele com o próprio corpo, enquanto faz o dia ir embora de maneira mágica.
Tudo escuro e um vento sombrio corta o rosto daqueles que riram. Mil noites, é assim que seguirá, porque ela assim determinou e ele assim quis. Miguel nunca mais ousará a torturar nenhum casal, ele encontrou aqueles que queria e descobriu-se fraco perante a imensidão daquele amor. Nessa noite, uma nephalin e um vampiro voltarão para casa, eternos, como deve ser.