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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Jogo em Família - Parte 4


- Você sempre me fez perder a cabeça, veja agora, como é bom viver sem ela.

E sem pensar duas vezes, a lamina, antes limpa com tanto zelo, agora se manchava de vermelho sangue, deixando escorrer toda essência de uma vida perdida pela ingratidão. A loira fraquejou ao ver a cabeça de Gabriel rolar pelo tapete novo. Teve que se sentar na cama, respirar uma, duas, milhões de vezes, até ter coragem o suficiente para levantar, e forças para permanecer assim. O que a trouxera de todo aquele mundo sentimental, foram os gritos da madrasta, que inúteis, pediam por socorro. Deixou que um sorriso banhasse novamente seus lábios demoníacos, era disso que gostava, do som do desespero deles, da forma como seus olhos imploravam pela vida, de como podia ter o controle de todos em suas mãos, quando antes, todos achavam que era ela apenas mais uma garota perdedora.

Não demorou para chegar ao corpo estendido da mulher, que tinha as orelhas cobertas por sangue, e os olhos inundados de lágrimas.

- Eu não agüento mais...

Choramingou como se aquilo fosse lhe salvar a vida. Milena apenas tirou os fones do seu ouvido e os jogou em um canto.

- Sabe quantas e quantas vezes eu disse isso? Tantas que você não poderia contar. Se eu agüentei, você também pode agüentar mais um pouco. Mas olha como eu sou boazinha. Está vendo isso? É um pequeno experimento das aulas de química. Eu sempre fui uma garota muito inteligente, e ninguém duvidou disso, nem meu professor. Ele me liberou os laboratórios e, acredite, eu vou ajudar muita gente com isso. Mas ele precisa de um teste voluntário em humanos, senão, como poderemos comercializar? Eu vou ganhar uma puta grana se isso der certo, veja por esse lado, você vai morrer para salvar a vida de milhões de pessoas. Sorria, isso é uma coisa boa. É capaz até de você conseguir ir para o céu, sabia? Muitas pessoas sonham com isso, tem até gente comprando terreno no céu! E você vai conseguir de graça. Imagina a cena, Deus te esperando lá de braços abertos, para confortar a tua dor, acalmar seu coração. Imaginou? É lindo não? Deus gosta de quem se sacrifica, ele sempre os recompensa, essa é sua chance. Agora toma isso, é só um comprimidinho, vamos, não precisa de água. Isso, boa garota. Está doida pra saber o que vai acontecer não é? Eu também teria curiosidade. Bem, vejamos. O que eu te dei, é um composto natural de ervas indianas com uns toquezinhos a mais. Você já ouviu falar de remédios para diabetes, pressão alta e o caralho a quatro, sim? Então, esse comprimidinho vai fazer você relaxar igual um relaxante muscular, a única diferença, é que fará seus músculos doerem tanto, que você vai querer arrancá-los do próprio corpo. Mas você não terá forças. Porque sua pressão vai abaixar tanto, que você terá até dificuldades em respirar, mas não se preocupe, eu tenho tudo pronto para uma emergência, sem ar você não morre. Gritar? Bem, seria uma possibilidade, mas sua glicose estará tão baixa, que seu pâncreas vai começar a trabalhar adoidado e com tanto esforço e você não vai conseguir que nada saia da sua boca alem de sangue. Você já teve labirintite? Eu não, mas sempre disseram que é a pior coisa do mundo. Vamos ver se é verdade.

Milena não parecia muito preocupada em ter que carregar o corpo da madrasta nos ombros. A mulher era pesada, mas ainda sim, tinha um corpo muito bonito para uma pessoa de 40 anos. Simone estava quase desacordada, mas seu instinto de sobrevivência a impedia de se entregar ao desmaio, ainda que estivesse fraca o suficiente para não conseguir impor suas vontades ao próprio corpo. A visão embaçada dificultava em saber o que estava acontecendo ou, no caso, para onde estava sendo levada. Apenas sentiu o frio do chão de cimento da garagem entrar em contato com seus pés quentes e, como um vulto, logo depois, estar sendo suspensa por cordas de aço. Mas que diabos aquela garota estava fazendo?

- É terrível se sentir assim, não é? Vendo a vida e a morte passar na frente dos seus olhos e não poder se agarrar a nenhuma delas. Estar impotente até mesmo para suplicar por um pouco de compaixão alheia. Não conseguir gritar por salvação, ou derramar uma lágrima pela dor que extermina seu corpo por dentro. Eu sei bem como é. Eu senti cada uma dessas dores que você sente agora. Eu estive presa ainda que livre. Eu engoli gritos desesperados para não perturbar a sua vida. Eu me afoguei nas minhas próprias lágrimas, para que a sua festa não fosse manchada pelo sufoco a qual minha alma se entregava. Mas não se preocupe, eu não vou sugar sua vida como você fez com a minha.

Entre as ferramentas do pai expostas em um balcão mofado, um radinho de pilha começou a tocar a quinta sinfonia de Beethoven. Misturado à musica, o som de laminas sendo afiadas era entrecortado por murmúrios fracos de piedade, e pelo apito de uma chaleira preenchida com água fervente. Boa contradição. Depois de sentir o fio de corte do machado, Milena se levantou da poltrona de couro e desligou o fogão a gás. Encheu um balde qualquer e, como se estivesse brincando de molhar amigos com mangueira em um dia ensolarado, jogou toda a água no corpo da mulher, que nem se contorcer conseguiu, mesmo sentindo a pele toda ir sendo queimada lentamente. Para a garota, aquele desespero acumulado no fundo da garganta era algo tão normal, que não parecia crueldade mostrar aos outros como era a sua dor, fazê-los experimentar do mesmo veneno ao qual a drogavam todos os dias de sua vida.

Nenhuma palavra mais fora dita. Lembrar-se de todo sofrimento que passou para chegar até ali, fazia a garota fraquejar, e ela não podia. Tinha resistido às piores torturas previstas, não poderia se entregar no seu momento de glória, mas já estava perdendo o fôlego para trazer justiça à própria mente. Sem emoção, o machado era usado como arma final daquele espetáculo, ou ao menos, daquela cena, que aos poucos, ia deixando apenas pedaços de um plano apodrecer no chão ensangüentado.

O vermelho alheio, preso aos cachos loiros de Milena, ia manchando o tapete amarelo da sala, deixando pegadas de um passado que ia morrendo, para dar lugar a um futuro melhor.

Ainda calada, ela puxou o pai e o sentou em uma poltrona mais confortável, amarrou-o com a corda que antes suspendia as roupas no varal e sentou na sua frente, esperando que o mesmo acordasse. O que não demorou muito.

- Sabe pai, eu nunca senti o que estou sentindo agora. É como se, minha alma estivesse livre, sabe? Pronta para voar, desvendar os mistérios do mundo. Eu não sei dizer, mas uma emoção tão forte que parece que meu peito vai explodir. É mais do que a melhor sensação do mundo, é o êxtase da esperança. Saber que vou acordar amanhã e o sol vai estar brilhando lá fora. Que os pássaros cantarão e eu vou poder curtir a musica. Todos os olhos que se voltam pra mim não mais me julgaram, eles apenas me olharão como qualquer outra pessoa que caminha de cabeça erguida na rua. Desde que a mamãe morreu que eu não sinto isso. Ela fazia a minha vida ter sentido, e me dava forças para querer continuar e vencer. Sem ela, todas as razões e as vontades deixaram de existir, e você não soube suprir isso. Todas as vezes em que eu corri para você, encontrei seus braços fechados, e isso foi me matando, pouco a pouco. Saber a única pessoa a quem eu podia recorrer estava se tornando um estranho que não se importava com a minha existência. Você matou todos os meus sonhos como quem esmaga um inseto. Tirou de mim toda a certeza de vitória, mas hoje, eu sinto tudo isso voltar ao lugar. Eu sinto o mundo voltando a girar como deve, e sei que vou conseguir acompanhá-lo. Por isso espero que entenda que estou agarrando meu destino com todas as forças que ainda me restam, mas para que eu continue a viver e crescer, preciso arrancar as ervas daninhas que impedem meu caminho de florescer.

Uma pequena lágrima escorreu pela bochecha da garota, mas não era uma lágrima de dor, como tinha sido há tantos anos, era a lágrima mais pura e feliz que alguém já pode ter derramado. O brilho de seus olhos era refletido no dourado do punhal que penetrava o coração do pai da garota, que sufocava até a morte.

Era estranho pensar que aquela casa tinha sido palco do que antes era destinado à sua mente. Um conto de fadas que nunca poderia sair do papel e agora ganhava a realidade. Ela não era uma má pessoa, longe disso, apenas queria ter o que sempre lhe fora negado e agora estava em suas mãos. A felicidade que tanto ansiava, estava começando naquele jantar, ao qual ela continuou logo após lavar as mãos, deliciando-se com a macarronada que preparara especialmente para aquela comemoração.