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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Bailarina e Maltrapilho


O som do violino vinha de longe, trazido por um par de pés despreocupados com o tempo. Uma melodia doce ao mesmo tempo em que aguda demais. Aquelas notas, tão únicas em sua excêntrica composição, ansiavam pela companhia da dançarina, que há pouco tirara os pés do chão. Vinha com maestria, trilhando um caminho sábio por entre as rosas de espinhos apontados em sua direção, perfurando a carne que, de tão cortada pela travessia improvisada, já nem mais sangrava a podridão dos condenados.


Cheiro de terra molhada, ótimo sinal para aquele que procura os servos de suas infinitas questões. O céu perdera a batalha e se deixara enegrecer como em todas as outras noites findadas de dor e contradição. As poucas gotas que sobraram, da antiga chuva devastadora, firmavam-se nas folhas destroçadas pela ventania da manhã. Uma a uma, iam caindo na calçada de pedra, escorregando como crianças até o leito merecido, onde ela, ali repousava.


Caixão de vidro para a bailarina promissora, a mãe queria que todos vissem seu pequeno pedaço de porcelana. Mal sabia que o corpo jazido ali, coberto por fitas de seda e cetim, era contemplado apenas por vermes, que lutavam entre si pelas melhores e mais saborosas partes do banquete. Mãos presas sobre o abdômen, um sorriso desenhado pelo funesto homem dos detalhes. A bailarina não sorria, jamais fora ousada o suficiente. Seus dentes brancos, cultivados a firmes ensinamentos, não tinham liberdade para entrar no palco. Bailarina apenas fingia, imitava, imaginava.


O violino cessou. Como num corte profundo ao vento uivante, findou suas cordas de aço renomado, e pousou no tumulo recém criado. O maltrapilho que tocava, abriu a gaiola de sua companheira, deu-lhe um beijo adocicado nos lábios e ordenou que levantasse. Bailarina assim fez, com um sopro que extinguira para sempre todo resquício de vida em seus pulmões inexistentes e, antes que pudesse abrir os olhos, Maltrapilho segurou suas pálpebras com dois dedos. Sua voz suave e grossa ronronou aos ouvidos delicados dela, cantando uma nova conquista.


- Não abra os olhos, Bailarina. Apenas dance, gire com seus braços para o alto, gaste suas novas sapatilhas.

Acompanhe-me, Bailarina, que para onde vou, o palco será apenas teu, e enquanto teus olhos mantiverem-se fechados, serás a protagonista do show que preparei para ti. Milhões irão glorificar-te. Aplaudirão teu espetáculo a cada dia, e uma chuva de rosas dançará aos teus pés toda vez em que eles repousarem.


Sem encontrar resistências, Maltrapilho apanhou seu violino e soltou a primeira nota de uma nova melodia. Bailarina levantou e começou a dançar. Por onde seus pés iam passando, pequenas flores iam crescendo, deixando uma marca de encanto para trás. A música corria todos corredores, incendiando vivos e mortos, presentes e perdidos. Aquele foi o momento em que Bailarina deu seu primeiro sorriso.


Um rodopio aqui, um salto ali, e o caminho ia se revelando, até que, num descuido desajeitado, uma fita prendeu-se no prego enferrujado. Bailarina não percebia, estava contente demais para ligar para qualquer uma de suas fitas, e mais a frente, Maltrapilho apenas sorria. A dança continuou, seguindo o ritmo enlouquecido do violino, e a cada centímetro que ia sendo conquistado, um pedaço da roupa rosa ia sendo deixado de lado. No final daquela jornada, restou apenas uma fita. Um laço tecido de amor, enrolado nos cabelos castanhos da jovem, que parou ao perceber-se nua.


- Não posso continuar assim, meu publico me espera! Dê-me roupas, Maltrapilho, e continuaremos a valsa que me prometestes ser eterna.


O sorriso do rapaz mal vestido, entortou-se e tornou-se aliviado. Sua musica abriu os portões do novo palco, e o banquete do dia estava confirmado.


- Não te preocupes, minha bailarina, para onde seguimos, tuas roupas não farão falta.


E assim seguiu, adentrando o caminho do inferno. Bailarina, ao seu lado, ia queimando aos poucos a única veste que lhe tinha sobrado, até que somente seus ossos estivessem bailando naquele túnel perdido. Mal sabia que a canção duraria para sempre, e por mais cansado que seus pés estivessem, estariam fadados a gastar-se até o final dos tempos.


No dia seguinte, Aurora viera jogar a terra sobre o vidro que deixara exposto para o enterro da filha. Encontrou sua porcelana sorrindo, assim como deixara, mas as sapatilhas, outrora novas, estavam gastas. Não importava, ela estaria sendo levada para um lugar melhor, ou assim acreditava.