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quarta-feira, 2 de junho de 2010

Prisão de Ossos

Acordar. É essa a primeira vontade de quem é forçado a dormir. Abrir os olhos e encontrar a luz que esclarecerá todos os seus problemas, que o puxará de volta à uma realidade monstruosa, mas muito mais salvadora do que o vazio silencioso do sono. Não sou diferente de qualquer pessoa e, como tal, eu só queria acordar.


Talvez meus desejos estivessem mais bem guardados dentro de mim mesmo, abrir os olhos naquele dia, não foi a melhor coisa que fiz. Quando meus olhos se abriram, eu pensei continuar dormindo, desbravando aquele pesadelo eterno. Não me lembro muito da primeira imagem que se formou atrás da minha retina, minha cabeça doía tanto, que até o ruído dos ratos ao redor parecia um tambor. Quem sabe aquela dor fosse proveniente de algum machucado, justificativa lógica para a quantidade de sangue que escorria pelo rosto. Minhas mãos pareciam sumir com todos aqueles cortes e minhas roupas, oh Deus, eu estava coberto apenas por farrapos imundos. Cambaleei para o lado, numa inútil procura de levantar, mas meu corpo foi segurado por barras de ferro. O quê elas faziam ali? Até hoje eu procuro entender. Era tudo tão escuro, tão... sombrio. Até ela chegar.


Os saltos de suas botas pareciam querer esmurrar o chão, mas ela vinha graciosa. Calça escura, espartilho escuro, camisa branca. Cabelos negros, cacheados, na altura da cintura. Eu conhecia aquela silhueta de algum lugar, só não sabia que seria ela. Quando Camille virou, meu coração bateu mais rápido. Como um choque, meu corpo caiu para trás, de encontro à grade. Uma gaiola pequena, mas o suficiente para me manter prisioneiro de alguma insanidade. Só então pude perceber velas, várias delas, de todos os tamanhos, cores e aromas, espalhados pelo lugar. Um porão? Acho muito provável. O chão era imundo, tão imundo quanto minhas unhas que há pouco tentaram escavar para fugir. Ratos, baratas e insetos eram a companhia mais ilustre daquele local, que tinha ao fundo, uma cela escura. Que mal ela guardava ali? Acho que não queria descobrir.


Ela se aproximou, a feição de menina que sempre manteve em seu rosto já não ajudavam mais a entender seu semblante. O que ela fazia ali? O que eu fazia ali? Perguntas sem respostas, era tudo o que me dignava a ter. Sua mão fina atravessou a grade e tocou meu rosto com doçura, um carinho breve, um carinho que eu senti falta. Mas logo aquela carícia se transformou em raiva. Seus olhos chamuscaram de uma maneira sem igual e dos seus olhos escorreram lágrimas negras. Numa ânsia terrível de sair dali, confortá-la, confortar-me, joguei-me para frente, mas o cansaço me impedia de movimentos mais bruscos.


- Diz-me, o que faço aqui?


Só ao tentar falar percebi que minha garganta estava cortada, com um pano enrolado, ensangüentado, para que eu não gritasse. Eu daria tudo para ter um tom maior de voz naquele momento. Como era de se esperar, não tive resposta. Apenas um riso baixo, sôfrego, ecoando pelas paredes de pedra.


- Por favor, Camille, diz-me, o que faço aqui...?!


Pela minha insistência, ela virou-se, olhando-me com a mesma ternura de quem aprecia um amor. Levou o dedo aos lábios pintados em um batom vermelho, pedindo silencio. Era tão estranho vê-la daquela forma, tão pacata, tão acostumada a aquele horror. Com os mesmos gestos ternos e singelos, ela retirou um punhal do bolso. Havia sangue nele, havia o meu nome nele. Com toda delicadeza do mundo, ela levou a faca até os lábios, lambendo a lamina como se fosse algum tipo de doce. Esquivei-me, a tensão tomando conta de todos os meus músculos. Ao respirar, mais profunda e desesperadamente, engasguei com o cheiro fétido do lugar. Como ela conseguia? Suas narinas já pareciam acostumadas com a podridão do lugar. Ela já se tornara parte daquele lugar.


- Lembra-te do dia em que pedi, implorei para que não fugisse da minha vida, Andy? Era um dia de sol, uma tarde de domingo. Como naqueles contos em que os pais contam para as crianças. Havia borboletas voando entre nós, crianças correndo, cachorros, verde. Até hoje eu vou, todos os domingos, naquele parque. A árvore ainda tem os nossos nomes. Guardas o canivete que te dei? Disse que um dia seria útil, onde o deixaste? Já não importa mais. A única coisa que importa, é que me prometestes jamais fugir. Teus olhos brilharam contra a luz dos meus e teus lábios proferiram uma promessa que semanas depois tu abandonaste. Voou para longe, sem nem ao menos deixar uma explicação. Uma palavra. Sabe por quantos dias te esperei? Por quantas noites encharquei travesseiros em lágrimas saudosas? Deverias saber que eu não agüentaria, talvez, se houvesse uma despedida. Mas não, tu apenas foste sem destino certo. Acontece que, castigos servem para pessoas malvadas como você.


As palavras dela vinham carregadas em dor. Seus olhos brilhavam de forma maníaca. Não era, nem de longe, a doce garota que um dia me perguntara as horas. O que havia acontecido com ela? Não parecia perigosa, só parecia... carente. Eu estava perdido, completamente. Aquelas falas, eram verdades, atos impensados, mas era passado. Qualquer um poderia ter superado. Por que me torturava com aquilo?


- A saudade é algo que dói muito mais do que você pode imaginar, meu querido. É uma dor tão aguda, que chega a rasgar o peito em noites frias. Mas, com os anos, você aprende a se tornar imune a ela. Existem tantas cicatrizes, que seu corpo parece apenas um retalho do que fora algum dia. É isso o que me tornei, apenas um espantalho do que um dia fui. Não me culpo por isso, ao contrário, agradeço aos responsáveis.

O que ela queria com tudo aquilo? Qual era o real propósito? Falava de maneira tão aleatória, que eu não tinha certeza se era uma vingança contra mim, ou apenas uma forma que ela tinha de crucificar o que o tempo havia transformado, como ela dissera, em farrapos.


- Quais? Quais os responsáveis?


- Todos, querido, todos. Você sabe como se deve contar a uma menina de 4 anos que sua mãe morreu? Devem-se usar palavras doces, acarinhá-la e então, quando ela chorar, abrigá-la nos braços e mentir que está tudo bem. Mas não, eles apenas gritaram que era para eu parar de chorar se não quisesse apanhar. Disseram que minha mãe morrera de desgosto por ter uma filha como eu. Você sabe o que é ver seu pai virar um alcoólatra que chegava todas as noites fedendo a bebida e vendo que seu corpo tinha mudado, sentir tesão por você? Você sabe como é nojento tê-lo se esfregando em seu corpo inocente, tampando sua boca com força para que não pedisse por ajuda enquanto ele tirava sua pureza de menina? Sabe o que é ver todos os seus amigos irem embora quando seu dinheiro tinha virado água? Como é desconfortável as camas em um orfanato e como é triste ver todos arranjarem uma família quando você já não tem nada? Ou o quanto é sofrido ser lançada ao mundo apenas com a roupa do corpo, cultivando apenas um único laço de amor? Ter de vencer sozinha, depois das surras que o mundo lhe deu? Não? Pois eu vou te contar, não são as melhores sensações do mundo e não é nada agradável ser abandonada. Ver todos a quem você ama fugirem como ratos, perder tudo o que tinha apenas por não querer ser estuprada todas as noites. Agora, vamos, faça o que tem vontade. Julgue-me insana por eu querer prender ao meu redor todas as pessoas, para que elas não possam mais ir embora. Mostre-me que meus atos são distorcidos, porque é isso o que eu quero. É isso do que eu preciso. De alguém que segure a minha mão e me mostre que os horrores do mundo só estão nessa minha cabeça sórdida, e que há algo melhor além desta fortaleza de pedra. Eu só preciso de um abraço, quando todos ao meu redor parecem perder os braços e desviarem. Eu só quero uma palavra de consolo, mas as bocas parecem mofadas em suas próprias monstruosidades para dizer qualquer coisa bonita. Eu só peço que alguém me salve, mais nada.


Eu não tinha como lutar. Não sabia que ela cultivava um passado tão triste, e por mais que eu quisesse, eu não poderia ajudá-la, eu não poderia salvá-la de si mesma. Então apenas me encolhi, e ela logo entendeu o recado. Despejou meu corpo naquela cela escura, junto a outros cadáveres e sumiu.

Sei que não vou durar muito nessa clausura, e logo serei apenas mais um corpo nesse monte, mas também sei que nenhuma dor que eu traga comigo, vai ser maior do que a dor que ela aceitou carregar pelo resto da vida.