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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Luxúria




Meia-noite e meia e o último ônibus deixa o terminal inicial. Apenas uma garota embarca. Seu nome? Não consta na camiseta dos formandos. É sempre um mesmo ritual. Ela procura pelo banco mais perto e escondido da porta, tira um livro da bolsa, pega o aparelho de som e ajeita o óculos. Somente ela e o motorista, como em todas as outras noites. O som pesado da música que toca em seu aparelho toma conta do silêncio que permanecia ali. O motorista já não se importa mais, no começo achava um belo contraste com o jeito delicado e as roupas meigas da moça, mas depois de todo um ano se torna normal.

Ela está em uma boa parte do livro, presume-se isso por ela estar lendo pela segunda vez. Um sorriso de canto brinca em seus lábios, suas mãos tremem ao caminhar pela página. Seus pensamentos podem imaginar aquela cena, toda uma onda de prazer que é brutalmente quebrada quando o ônibus pára.

Os dois pares de olhos, que mantinham-se concentrados em seus afazeres se viram na direção da porta. Há um passageiro novo. Algo que não acontecera naquele ano. Ele é tão lindo, que a intensidade dos seus olhos azuis escuro faz com que a garota deixe um suspiro baixo escapar.

Ele sorri. Ele sorri e o brilho dos seus dentes reinam na escuridão daquele início de madrugada. Seus passos são largos e lentos, as mãos escondidas no bolso do sobretudo o torna ainda mais misterioso. Ele caminha até o último banco, sem se importar com o sacolejo do ônibus. Senta-se e acaba escondido pelos outros bancos.

Ah, ele pode sentir o que ela está pensando. Sim, ele pode.. E ele gosta, e fará ela gostar. Como um passe de mágica, seu corpo se desloca em uma velocidade sobre-humana até ela, e sua voz surge apenas como um sussurro em seu ouvido: "Se entregue." Seu hálito faz com que ela se entorpeça, abrindo assim as portas para que ele se sinta convidado a possuí-la. Como um vulto ele volta para o lugar, olhando-a sem que ela perceba.

As luzes piscam 3 vezes e apagam. Está tudo escuro como a noite lá fora, e ela não pode mais ler. Retira os óculos e pousa melhor o livro sobre o colo. Fecha os olhos e volta a imaginar aquela tão maravilhosa cena.

Ele está olhando diretamente pra ela, como se pudesse invadir a sua mente.

"Ela sente como se ele a pegasse pela mão e a conduzisse na dança. Sua camisola de seda voa com a brisa fria que transpassa a janela. Os cabelos soltos caindo-lhe nos ombros enquanto ele beija-lhe o pescoço. Ele está completamente nu, e a envolve nos braços em um abraço caloroso..."

Um suspiro feminino é ouvido através da música naquele ônibus, mas só ele percebe.

"As mãos claras e tímidas dela percorrem as costas dele, enquanto caminham para a cama. Seus lábios se unem em um beijo calmo, mas que vai se tornando intenso e volupioso conforme as mãos dele sobem pela cintura dela até alcançar-lhe os seios, abaixando as alças da camisola..."

Ela está sentindo um calor lhe subir o corpo, assim como suas mãos deslizando em um dos seios, como se descobrisse um mundo novo...

"A camisola de seda está caída no chão. Os dois corpos estão deitados na cama, e ela suspira baixo enquanto ele beija sua barriga, descendo pouco a pouco, enquanto a ponta dos dedos dele desliza pelo interior de suas coxas..."

A mão inquieta dela se conforta enquanto aperta uma das pernas, alisando a coxa com uma vontade enlouquecedora...

"Ele se encaixa entre as pernas dela, impulsionando o corpo pra frente e pra trás lentamente. Seus lábios estão ocupados em lhe mordiscar o pescoço, deleitando-se em ouvir os gemidos baixos que ela solta. As respirações estão ofegantes, ele está se embalando ainda mais forte e rápido para dentro dela, sentindo todo o corpo vibrar de prazer..."

Suas mãos estão suando conforme ela as passa pelo corpo. O corpo todo está em algum tipo de frenesi, ela não consegue se controlar. Os lábios se mordem violentamente, na tentiva de abafar os gemidos que sente vontade de deixar escapar. Todos os sentidos estão aguçados, mas parecem não existir, aquela sensação é por demasiada enlouquecedora...

"A sincronia dos corpos é perfeita, tão perfeita que em poucos minutos eles param, completamente exaustos. Estão abraçados, desmaiados sobre a cama. As respirações cansadas e ofegantes, os cabelos molhados pelo suor, e nos lábios um sorriso malicioso e satisfeito estampado."

Finalmente chega a hora de descer. Ela não sabe o que aconteceu, mas seu corpo está completamente extasiado por aquela experiência. Nunca pôde viver a cena de um livro de uma forma tão vívida em sua mente. Ela sabe que foi apenas imaginação, mas não quer pensar nisso agora, precisa de um banho gelado.

Do último banco ele sorri satisfeito enquanto ela desce. Mais uma noite que havia rendido doces frutos ao demônio da luxúria.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Jogo em Família - Parte 4


- Você sempre me fez perder a cabeça, veja agora, como é bom viver sem ela.

E sem pensar duas vezes, a lamina, antes limpa com tanto zelo, agora se manchava de vermelho sangue, deixando escorrer toda essência de uma vida perdida pela ingratidão. A loira fraquejou ao ver a cabeça de Gabriel rolar pelo tapete novo. Teve que se sentar na cama, respirar uma, duas, milhões de vezes, até ter coragem o suficiente para levantar, e forças para permanecer assim. O que a trouxera de todo aquele mundo sentimental, foram os gritos da madrasta, que inúteis, pediam por socorro. Deixou que um sorriso banhasse novamente seus lábios demoníacos, era disso que gostava, do som do desespero deles, da forma como seus olhos imploravam pela vida, de como podia ter o controle de todos em suas mãos, quando antes, todos achavam que era ela apenas mais uma garota perdedora.

Não demorou para chegar ao corpo estendido da mulher, que tinha as orelhas cobertas por sangue, e os olhos inundados de lágrimas.

- Eu não agüento mais...

Choramingou como se aquilo fosse lhe salvar a vida. Milena apenas tirou os fones do seu ouvido e os jogou em um canto.

- Sabe quantas e quantas vezes eu disse isso? Tantas que você não poderia contar. Se eu agüentei, você também pode agüentar mais um pouco. Mas olha como eu sou boazinha. Está vendo isso? É um pequeno experimento das aulas de química. Eu sempre fui uma garota muito inteligente, e ninguém duvidou disso, nem meu professor. Ele me liberou os laboratórios e, acredite, eu vou ajudar muita gente com isso. Mas ele precisa de um teste voluntário em humanos, senão, como poderemos comercializar? Eu vou ganhar uma puta grana se isso der certo, veja por esse lado, você vai morrer para salvar a vida de milhões de pessoas. Sorria, isso é uma coisa boa. É capaz até de você conseguir ir para o céu, sabia? Muitas pessoas sonham com isso, tem até gente comprando terreno no céu! E você vai conseguir de graça. Imagina a cena, Deus te esperando lá de braços abertos, para confortar a tua dor, acalmar seu coração. Imaginou? É lindo não? Deus gosta de quem se sacrifica, ele sempre os recompensa, essa é sua chance. Agora toma isso, é só um comprimidinho, vamos, não precisa de água. Isso, boa garota. Está doida pra saber o que vai acontecer não é? Eu também teria curiosidade. Bem, vejamos. O que eu te dei, é um composto natural de ervas indianas com uns toquezinhos a mais. Você já ouviu falar de remédios para diabetes, pressão alta e o caralho a quatro, sim? Então, esse comprimidinho vai fazer você relaxar igual um relaxante muscular, a única diferença, é que fará seus músculos doerem tanto, que você vai querer arrancá-los do próprio corpo. Mas você não terá forças. Porque sua pressão vai abaixar tanto, que você terá até dificuldades em respirar, mas não se preocupe, eu tenho tudo pronto para uma emergência, sem ar você não morre. Gritar? Bem, seria uma possibilidade, mas sua glicose estará tão baixa, que seu pâncreas vai começar a trabalhar adoidado e com tanto esforço e você não vai conseguir que nada saia da sua boca alem de sangue. Você já teve labirintite? Eu não, mas sempre disseram que é a pior coisa do mundo. Vamos ver se é verdade.

Milena não parecia muito preocupada em ter que carregar o corpo da madrasta nos ombros. A mulher era pesada, mas ainda sim, tinha um corpo muito bonito para uma pessoa de 40 anos. Simone estava quase desacordada, mas seu instinto de sobrevivência a impedia de se entregar ao desmaio, ainda que estivesse fraca o suficiente para não conseguir impor suas vontades ao próprio corpo. A visão embaçada dificultava em saber o que estava acontecendo ou, no caso, para onde estava sendo levada. Apenas sentiu o frio do chão de cimento da garagem entrar em contato com seus pés quentes e, como um vulto, logo depois, estar sendo suspensa por cordas de aço. Mas que diabos aquela garota estava fazendo?

- É terrível se sentir assim, não é? Vendo a vida e a morte passar na frente dos seus olhos e não poder se agarrar a nenhuma delas. Estar impotente até mesmo para suplicar por um pouco de compaixão alheia. Não conseguir gritar por salvação, ou derramar uma lágrima pela dor que extermina seu corpo por dentro. Eu sei bem como é. Eu senti cada uma dessas dores que você sente agora. Eu estive presa ainda que livre. Eu engoli gritos desesperados para não perturbar a sua vida. Eu me afoguei nas minhas próprias lágrimas, para que a sua festa não fosse manchada pelo sufoco a qual minha alma se entregava. Mas não se preocupe, eu não vou sugar sua vida como você fez com a minha.

Entre as ferramentas do pai expostas em um balcão mofado, um radinho de pilha começou a tocar a quinta sinfonia de Beethoven. Misturado à musica, o som de laminas sendo afiadas era entrecortado por murmúrios fracos de piedade, e pelo apito de uma chaleira preenchida com água fervente. Boa contradição. Depois de sentir o fio de corte do machado, Milena se levantou da poltrona de couro e desligou o fogão a gás. Encheu um balde qualquer e, como se estivesse brincando de molhar amigos com mangueira em um dia ensolarado, jogou toda a água no corpo da mulher, que nem se contorcer conseguiu, mesmo sentindo a pele toda ir sendo queimada lentamente. Para a garota, aquele desespero acumulado no fundo da garganta era algo tão normal, que não parecia crueldade mostrar aos outros como era a sua dor, fazê-los experimentar do mesmo veneno ao qual a drogavam todos os dias de sua vida.

Nenhuma palavra mais fora dita. Lembrar-se de todo sofrimento que passou para chegar até ali, fazia a garota fraquejar, e ela não podia. Tinha resistido às piores torturas previstas, não poderia se entregar no seu momento de glória, mas já estava perdendo o fôlego para trazer justiça à própria mente. Sem emoção, o machado era usado como arma final daquele espetáculo, ou ao menos, daquela cena, que aos poucos, ia deixando apenas pedaços de um plano apodrecer no chão ensangüentado.

O vermelho alheio, preso aos cachos loiros de Milena, ia manchando o tapete amarelo da sala, deixando pegadas de um passado que ia morrendo, para dar lugar a um futuro melhor.

Ainda calada, ela puxou o pai e o sentou em uma poltrona mais confortável, amarrou-o com a corda que antes suspendia as roupas no varal e sentou na sua frente, esperando que o mesmo acordasse. O que não demorou muito.

- Sabe pai, eu nunca senti o que estou sentindo agora. É como se, minha alma estivesse livre, sabe? Pronta para voar, desvendar os mistérios do mundo. Eu não sei dizer, mas uma emoção tão forte que parece que meu peito vai explodir. É mais do que a melhor sensação do mundo, é o êxtase da esperança. Saber que vou acordar amanhã e o sol vai estar brilhando lá fora. Que os pássaros cantarão e eu vou poder curtir a musica. Todos os olhos que se voltam pra mim não mais me julgaram, eles apenas me olharão como qualquer outra pessoa que caminha de cabeça erguida na rua. Desde que a mamãe morreu que eu não sinto isso. Ela fazia a minha vida ter sentido, e me dava forças para querer continuar e vencer. Sem ela, todas as razões e as vontades deixaram de existir, e você não soube suprir isso. Todas as vezes em que eu corri para você, encontrei seus braços fechados, e isso foi me matando, pouco a pouco. Saber a única pessoa a quem eu podia recorrer estava se tornando um estranho que não se importava com a minha existência. Você matou todos os meus sonhos como quem esmaga um inseto. Tirou de mim toda a certeza de vitória, mas hoje, eu sinto tudo isso voltar ao lugar. Eu sinto o mundo voltando a girar como deve, e sei que vou conseguir acompanhá-lo. Por isso espero que entenda que estou agarrando meu destino com todas as forças que ainda me restam, mas para que eu continue a viver e crescer, preciso arrancar as ervas daninhas que impedem meu caminho de florescer.

Uma pequena lágrima escorreu pela bochecha da garota, mas não era uma lágrima de dor, como tinha sido há tantos anos, era a lágrima mais pura e feliz que alguém já pode ter derramado. O brilho de seus olhos era refletido no dourado do punhal que penetrava o coração do pai da garota, que sufocava até a morte.

Era estranho pensar que aquela casa tinha sido palco do que antes era destinado à sua mente. Um conto de fadas que nunca poderia sair do papel e agora ganhava a realidade. Ela não era uma má pessoa, longe disso, apenas queria ter o que sempre lhe fora negado e agora estava em suas mãos. A felicidade que tanto ansiava, estava começando naquele jantar, ao qual ela continuou logo após lavar as mãos, deliciando-se com a macarronada que preparara especialmente para aquela comemoração.

domingo, 24 de julho de 2011

Jogo em Família - Parte 3



Caminhou até a mulher e lhe pegou pelos cabelos, mesmo que curtos, assim como fizera com a morena, que chorava no canto da sala. Fez Fernanda subir todos os degraus com a faca fincada em sua perna, e a jogou no banheiro. Os ladrilhos brancos, limpos, iam sendo inundados pelo vermelho sangue, que deixava rastros por onde passava. Viu uma sombra vindo do quarto e suspirou decepcionada.

- Ninguém me obedece...

Murmurou. Olhou para a mulher caída, que tentava se erguer, puxou seus cabelos e a fez bater o nariz na pia de maneira tão forte, que desmaiou. Arrancou a faca de sua perna e, na mesma hora em que virou, enfiou a faca de maneira certeira no coração de Vinicius, que cambaleou para trás, tentando tirar de seu corpo aquele objeto que sugava toda sua vida, e acabou caindo de cabeça no chão do primeiro andar, completamente sem vida.

- Ah droga. Eu tinha planejado algo mais legal, mas enfim.

Sem dar muita importância, a garota voltou para o banheiro, entrou e trancou a porta. Com esforço, pegou o corpo da mulher e jogou dentro da banheira. Ligou as duas torneiras e, na medida em que a água ia caindo, ela ia derrubando todos os remédios que estavam no balcão da pia. Soltou a algema e a olhou ali, inconsciente. Sorriu. Pensou melhor. Voltou a algemá-la, mas agora, com as mãos presas atrás dos joelhos, forçando ainda mais a ferida na coxa. Passaram-se poucos minutos até que a banheira estivesse quase cheia, ela desligou as torneiras e completou o que faltava com cinco frascos de desinfetante. Só precisava do toque final. Abaixou-se para pegar o pacote que tinha escondido entre os produtos químicos no balcão, e quando retornou, viu os olhos escuros de Fernanda se abrir lentamente. Olhos que viam apenas pétalas de rosas sendo jogadas sobre as águas da banheira. Tentou se remexer para respirar melhor, mas era inútil. A perna parecia adormecida de tanta dor, e os braços presos daquele jeito, não ajudavam em nada. Assim que terminou, Milena acenou um adeus para a cunhada e se ajoelhou no chão. Colocou a luva que usava para limpar o banheiro e rapidamente segurou em seu pescoço, apertando forte até que pudesse afogá-la naquela água imunda. A mulher se debatia espalhando água para todos os lados, mas para a garota, aquilo era apenas diversão. Em seu peito, uma paz começava a reinar, a paz do prazer, da certeza de benfeitoria, da vingança. Esperou que Fernanda parasse e então, terminasse de se afogar por si só.

O corpo estava ereto novamente. A luva jogada junto à banheira e, no espelho, o reflexo de um ser angelical a pentear seus cabelos loiros na altura da cintura. Retocou o brilho dos lábios e abriu a porta do banheiro de maneira silenciosa. Não queria acordar a cunhada, afinal, os mortos deveriam ser respeitados, não?

Assim que saiu, viu o irmão levantando, com as mãos nas paredes, procurando apoio. Não disse nada, apenas ficou ali, parada, contemplando a dificuldade em que ele tinha de apenas se locomover. Enquanto o via, lutando por forças para achá-la, via também todas as imagens de tinha dele em sua mente. A maneira como gritava enquanto ela lhe dava os remédios, as noites em que não dormiu por ter que cuidar das crises asmáticas dele, ou as brigas em que saíra machucada por defendê-lo. Os amigos que perdeu, as surras que levou... De todos, ele era o único a quem ela realmente tinha algum apreço. Quem sabe, no interior mais profundo de seu coração, existisse uma cicatriz de afeto pelo irmão, afinal, ele era sangue de seu sangue, a única pessoa que lhe restara depois da morte da mãe. Ela viveu por ele durante longos anos, sofreu, sacrificou-se, e mesmo sem esperar, a única recompensa que lhe fora destinada foi o desprezo e a crueldade. Talvez ele não merecesse sofrer daquele jeito, mas ele merecia morrer, e esta era uma verdade irrefutável.

Resolveu não dizer nada, apenas desceu os degraus que os separavam e o segurou pela cintura. O rapaz perguntava quem era, chorava de dor, mas se entregava aqueles braços que o envolviam em proteção, talvez a irmã psicopata tivesse desmaiado, talvez a salvação estivesse lhe envolvendo, por isso não falou mais nada. Foi conduzido até o quarto de Milena, quando sentiu-se solto e caiu de joelhos no chão. A garota, com o rosto tomado pelo remorso, alcançou na parede a katana que ganhara outro dia. Adorava espadas e facas, e começara sua coleção há alguns meses.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Jogo em Família - Parte 2


Depois destas palavras, atirou na caixa de energia e cortou a luz da casa. Do escuro, seguiram gritos e o arrastar de cadeiras. Passos pesados em sua direção, barulho da tranca da porta e das janelas, desespero.

- Não tentem abrir as portas ou as janelas, vocês são tão tolos que nem viram que elas foram seladas. Os fios de telefones cortados e o aparelho novo que instalei na cozinha, papai, bloqueia qualquer sinal de aparelho eletrônico. Não tentem fugir, meus amados, esta é a noite em que vocês serão abençoados pelo perdão, e poderão entrar no reino dos céus.

Ela tinha todos sob controle, todo o plano mapeado em sua cabeça, nada daria errado. Sabia que o primeiro que viria tentar pará-la era o pai, e por isso seguiu até o meio da escada que dava acesso ao segundo andar, mirou em sua perna, e atirou. Um grito rouco ecoou pela casa, e logo o corpo agonizante do homem ficou estendido no final da escadaria. Estavam todos ensandecidos, o escuro fazia com que batessem em todos os cantos e quebrassem tudo o que lhes fosse uma barreira. Ela era a única que enxergava, passara tanto tempo nas sombras de uma vida, que tinha se acostumado a viver na completa escuridão.

Voltou a subir os degraus um a um, vagarosamente, como se a preocupação não existisse naquela cena cheia de incompreensão e delírios. Sentiu um peso se abater sobre o corpo assim que terminou o primeiro lance da escada, mas ao invés de surpresa, seus olhos esboçaram apenas um sorriso simpático. Ligeiramente ela se virou entre os braços do irmão, tirou do avental duas seringas e fincou em seus olhos, injetando neles uma quantidade considerável de água sanitária, fazendo o rapaz debater-se de dor e, completamente cego, entregar-se ao desmaio já esperado.

Subiu o que restava às pressas, não tinha certeza de quem seria o próximo a tentar impedir-lhe, e precisava estar pronta para qualquer um que fosse. Encontrou uma silhueta robusta quando encostou as costas na parede. O homem iluminado pela luz da lua denunciava Vinicius, que vinha sem medo algum, apenas raiva espumando pela boca. Milena deixou que ele se aproximasse do seu corpo, agarrando-o como se fosse uma capa protetora, perfeito. Puxou o facão do cinto preso na cintura, embaixo do casaco, e enfiou de uma só vez na barriga dele. O homem, mesmo grande, não tinha forças para revidar, então apenas caminhava para trás, seguindo o caminhar da garota que enfiava cada vez um pouco mais da lamina, até que conseguiu derrubá-lo na cama do irmão, já preparada para aquela ocasião.

Ouviu novamente o barulho da porta e sussurros das duas mulheres que ainda estavam lá embaixo. Riu alto e voltou para a sala, passando um pequeno canivete no dedo, até arrancar uma única gota de sangue que logo desmanchou em sua língua. Passou por cima do pai e pegou um comprimido na gaveta do armário ao lado, que era tão pequeno, que desceu facilmente pela garganta de Ricardo, fazendo-o adormecer quase instantaneamente. Arrastou-o até um canto e continuou a olhar Simone e Fernanda, que se encolhiam para a janela. Balançou a cabeça negativamente e se aproximou mais um passo, levando um breve susto ao perceber que as duas tinham pegado facões na cozinha, e cada uma segurava, pelo menos, dois. Respirou fundo e olhou as unhas, virou de lado e levantou o casaco, mostrando o cinto equipado com facas, seringas e balas que carregava.

- É muito perigoso criança brincar com faca, nunca ensinaram isso a vocês?

- Cala a boca, guria, você não vê que nós somos duas e você só uma? – Gritou desesperada a madrasta, empunhando a faca com mais firmeza.

- Acontece que, nem que vocês queiram vão conseguir me pegar. Sabe por quê? Porque eu me tornei muito melhor à medida que vocês destruíam a minha vida.

Aproximou-se mais, dois passos mais, mas o suficiente para que a mulher lhe avançasse e cortasse a manga do casaco. Aquilo fora o ponto final da conversa, Milena apenas bateu em seus rins com as mãos, fazendo-a largar o perigo que segurava. Enquanto a mulher se encolhia, ela pegou uma das algemas penduradas na calça, aparentemente como um acessório, e lhe prendeu as mãos. Sentiu um puxão no cabelo assim que terminou, e logo uma dor dilacerante no ombro esquerdo. Mal teve tempo de rosnar baixo, olhou que Fernanda lhe puxava e fincava a faca em sua carne. Sua reação fora de ódio, mas não podia agir com emoção, tinha de ser racional, treinara todo aquele tempo para poder agir em situações como essa. Pegou uma chave de fenda esquecida na janela, pelas duas que tentavam fugir, e fincou com força na coxa direita da mulher, fazendo-a cair no chão no mesmo instante. Milena levantou e, mordendo os lábios para amenizar o que sentia, retirou a lamina de sua carne, encaixando-a dentro do coturno que lhe vinha até o joelho. O vermelho do casaco se fundia ao vermelho de seu sangue, mas já tinha lidado com dores piores há tantos anos, que estava se tornando imune a elas. Algemou a cunhada e a deixou ali, caída no chão. Pegou a madrasta pelos cabelos e arrastou até a estante marfim, abriu a algema e prendeu junto a uma parte sólida da madeira. Alcançou uma das portinholas de vidro e pegou um pequeno aparelho de som.

- Você não gosta de ouvir musica? Hm? Pois então ouça.

Ligou o eletrônico em um metal extremamente pesado, e em um volume tão alto, que dava para se ouvir do segundo andar. Colocou os fones no ouvido da mulher, que gritou ao sentir aquelas pontadas agudas lhe perfurarem os tímpanos. A garota, ainda insatisfeita, arrancou o lenço do pulso e amarrou a cabeça de Simone junto à estante, apertado o suficiente para que não pudesse escapar, mas frouxo o suficiente para que pudesse respirar, ainda que com dificuldade.

- É a sua vez, cunhadinha.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Jogo em Família - Parte 1



O cheiro do molho de tomate dominava toda a cozinha, tão gostoso, que boa parte dele também conseguia preencher a sala. Na cozinha, bem equipada, estava Milena. Um semblante suave e um sorriso tímido escondido entre os ferros do aparelho recém colocado. A garota preparava o jantar da família com maestria, sempre escondera o jogo, e naquela noite, mostraria seus dotes. O pano de prato de um lado no ombro, o avental preso no pescoço e vários talheres pelo balcão. A sobremesa já estava na geladeira, e o macarrão quase pronto para ser servido. Preparava a salada com cuidado, cortes finos e retos, aprendera o manuseio da faca com o pai, que antes, mal sabia fritar um ovo. Não deixava ninguém aparecer na cozinha, precisava daquele espaço para preparar o prato que seria servido, e não conseguiria fazer aquilo com tanta gente. Na sala, os sofás estavam ocupados pelo pai, a madrasta, o filho da madrasta e sua esposa, e o irmão mais novo, além de falatórios e risadas. Estavam todos surpresos com o convite da fechada menina, mas não mostravam, a teoria principal, era que o psiquiatra estava fazendo seu trabalho.

Milena permaneceu com os fones no ouvido o tempo todo. A música alta ajudava a se concentrar nos seus afazeres. Repassava-os a todo instante em sua mente, passo a passo. Arrumou a mesa com uma toalha nova, comprou flores que ficaram num canto. Usou os pratos novos, os copos de cristal e os talheres do faqueiro de prata. Aquela ocasião, merecia. Colocou uma garrafa de vinho importado como bebida e, para o Michel, o irmão mais novo, um refrigerante de uva da melhor marca. Assim que terminou, colocou a comida na mesa e serviu os copos, chamou todos para vir e compartilhar daquele momento único. Esperou que todos se sentassem e, ainda sorrindo, continuou em pé. Segurou sua taça e bateu levemente a faca no cristal, chamando a atenção de todos.

- Er... por favor. – Começou tímida. – Eu queria aproveitar esse momento, para dizer algumas palavras. Todos aqui sabem que éramos duas famílias distintas, perdidas por esse universo, mas hoje, somos apenas uma. Simone pode não ser minha mãe, mas é a mulher que meu pai escolheu para passar a vida depois dela, e eu a respeito e admiro por isso. Vinícius pode não ser meu irmão de sangue, mas como eu sempre quis ter, se tornou meu irmão mais velho e, consequentemente, Fernanda, minha cunhada. Meu irmão aqui conosco, meu pai. Eu queria dizer que, se não fosse por vocês, eu nunca estaria aqui, vivenciando esse dia tão especial. Passei por muitas crises, tivemos todos muitos conflitos, e sei que boa parte deles, se deve à minha presença, mas hoje, isso tudo vai acabar. Renascerá um novo elo entre nós, um elo que jamais será quebrado, pela força que esse sentimento que deve nos unir terá. Eu sei que isso está ficando longo e monótono, por isso vou pular para a parte principal. Além de pedir desculpas a todos vocês pelos meus atos impensados, gostaria de dizer a você, Fernanda, que todas as vezes em que você me insultou, faltou com respeito e mostrou o quão fútil, metida e descartável uma pessoa pode ser, hoje, serão apagadas da minha memória. A ti, Vinicius, brindo todas as brincadeiras de mau gosto, as vezes em que não me deixou dormir quando eu mais precisava, e à falta de consideração. Ao meu irmão Michel digo que todos os transtornos que me causou, as noites sem dormir, os horários em que o despertador tocava para dar remédio, os hematoma que deixou cicatrizes em meu corpo, a falta de compaixão por aquela que sempre estava ao teu lado para segurar tua mão, hoje, será diluída nesse vinho que nos molha a boca. Simone, olhando em teus olhos agora, tomo fôlego para dizer que todas as noites em que meu rosto foi manchado por lágrimas por causa das tuas infantilidades, ou todas as vezes em que meus braços receberam arranhões de raiva pela tua audácia, o poço que você cavou com a foice do diabo para este corpo cansado de tantas batalhas, hoje, será lavado com o sangue divino. E a você, meu pai, que espancou a alma que o tinha como exemplo, fechou os olhos enquanto eu me afogava em dores e sofrimento, pisou em cima quando o mundo resolvia me estender ao chão sem pena, abandonou para a morte a criança que segurava tua mão e tripudiou do resquício de amor que um dia restou em meu peito, terá a consciência limpa pelo perdão que parte da minha mente em busca do teu coração.

Todos os olhares na mesa se voltaram para a garota que bebia o vinho com uma vontade inimaginável, mas não lhe restavam mais olhares atentos e graciosos, apenas revolta e susto pelas palavras que saíram de lábios tão finos.

Depois de degustar o vinho, Milena se afastou dois passos da mesa e retirou um pequeno revolver do bolso da calça, escondido pelo avental. Em seu rosto, o semblante era calmo e maníaco, mas certo do que estava fazendo, levantou a arma e atirou contra o teto, apavorando os demais.

- Quem quer brincar?